Betty Fuks – Fragmento clinico

Maria, uma menina de nove anos, é acometida de terrores noturnos um dia depois do massacre ocorrido numa escola pública no Rio de Janeiro, em 2011. Na ocasião, um ex-estudante conseguira burlar a vigilância, entrar na escola e atirar contra diversos alunos. Muitos deles morreram, deixando traumatizados não apenas os que se salvaram, mas também grande parte do povo brasileiro. Maria acorda no meio da noite em prantos, mas não quer falar sobre a causa do choro. No dia seguinte, vai para a escola e duas horas depois a mãe recebe um telefonema da coordenadora pedindo para ir buscar sua filha. A professora, a mesma que havia pedido à mãe, alguns meses antes, que levasse a filha para uma análise devido a dificuldades que apresentava junto aos coleguinhas, conta que a menina passou a chorar convulsivamente depois que alguns alunos começaram a falar do massacre ocorrido na outra escola. As crianças estavam com medo de que outro maluco viesse atacá-las na escola, mas Maria mostrava-se muito assustada. A professora havia tentado convencer a aluna de que naquela escola ela estava protegida, mas a menina parecia não ouvir, continuava angustiada e inconsolável. A mãe, então, levou a menina, que permanecia se recusando a dizer o porquê do choro, para casa. À noite um novo ataque de angústia acordou Maria que, dessa vez, expressava o desejo de encontrar Tati, a sua analista. Esta me contou, em supervisão, que a mãe da menina lhe telefonara às 6h30 da manhã e que ela se havia disposto a receber a paciente no primeiro horário. Ao chegar, Maria se agarrou à analista, chorando convulsivamente. Timidamente disse: “Você viu na televisão o que aconteceu naquela escola? Tenho muito medo”. A analista, angustiada com o ocorrido e com o sofrimento da menina respondeu: “Não tenha medo, já passou. Na sua escola isso não tem possibilidade de acontecer, tem segurança, não entra qualquer um”. Ao que menina respondeu zangada: “Você não está entendendo: estou com medo de ser como o assassino. Tive um sonho que estava com uma faca matando o pessoal da minha turma”. Tati percebeu que, diferente das outras crianças identificadas com as vítimas que foram assassinadas, a menina se identificava com o assassino. Mas esta percepção não livrou a analista da angústia. Disse para a menina: “Todos nós, às vezes, sentimos muita raiva de alguém e temos vontade de sair matando”. E numa tentativa de desidentificá-la com o assassino continuou: “O assassino era maluco e você apenas sonhou; não há hipótese de você fazer uma coisa dessa”. A sábia menina perguntou: “Como é que eu posso ter certeza disto?”. A analista, percebendo sua própria resistência em ouvir a criança narrar o trauma, calou-se. Fez-se um grande silêncio. Passados alguns minutos a menina perguntou: “Do que é que vamos brincar hoje?” E a analista respondeu: “De maldade!”. Maria começou então a encenar cenas de guerra e crueldade contra a analista que, retomando o lugar da transferência, levou a menina a legendar o real através da brincadeira “de maldade”. O jogo de erotização do desejo de matar que habita a alma humana, encenado na sessão, fez com que Maria passasse a dormir tranquila.